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Corpo vago

No artigo, o diretor do Sindicato dos Bancários da Bahia e presidente do IAPAZ, Álvaro Gomes, abordou a experiência na sede da população em situação de rua.

Fui às ruas conhecer a essência da exclusão social, visitei territórios, entrevistei moradores em situação de rua em suas próprias “residências”; lá conheci de perto a forte discriminação, o preconceito, o racismo sofrido por este segmento por parte da sociedade que os tratam como objetos descartáveis. No meu trabalho de mestrado, escolhi este tema, não por acaso: pretendo dar a minha contribuição acadêmica discutindo essa temática.


Visitei a sede da população em situação de rua, falei da pesquisa que iria fazer, eles concordaram. Assim, conversei com uma das lideranças e com ela visitei os territórios, sempre conversávamos e ela sempre me telefonava. Passou um período sem me telefonar, perdi o contato. Para minha surpresa, soube que ela morreu, não se sabe como.


A liderança era jovem, dinâmica, entusiasmada, buscava uma vida digna para ela e para todos, desenvolvia uma luta coletiva, mas morreu e foi enterrada como indigente, nem mesmo o movimento conseguiu informações sobre sua morte (foi assassinado? foi suicídio?) O fato é que seu corpo negro foi enterrado e ninguém sabe onde, sem a presença de nenhum conhecido ou familiar.


Nas atividades desse segmento também encontrei uma outra liderança e ela me revelou que gostaria de estudar psicologia e que chegou a se matricular, mas não tinha dinheiro para prosseguir. Eu não falei nada, mas fiquei pensando fazer algum esforço para viabilizar o plano dela. A última vez que eu a encontrei foi na posse popular dos defensores públicos na estação da Lapa, em setembro de 2022, tirei até uma foto com ela.


Navegando pelas redes sociais, encontrei a foto dela e a notícia de que ela teria sido assassinada; mais um jovem negro, morto de forma brutal, com sonhos a realizar e com um grande potencial.  Assim, nessa pesquisa que realizo, tenho observado uma população tratada como objetos descartáveis, vítimas da aporofobia, do preconceito, da discriminação, do racismo.


A liderança que entrevistei para a pesquisa, indignada com a forma que a estrutura social os trata, falou: “Eles têm o prazer de dizer ah, tá na rua deixa lá, porque sabe que vai morrer uma hora. Sabe que o corpo da gente é vago, uma hora vai morrer. Seja de morte matada ou de morte morrida. Uma hora ninguém vai conseguir sobreviver.” E assim, o seu “corpo vago” se foi, na mais completa invisibilidade, como objeto descartável. Até quando?


*Álvaro Gomes é diretor do Sindicato dos Bancários da Bahia e presidente do IAPAZ