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Prudência, voluntarismos e a “questão” militar

No artigo, professor do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, Paulo Fábio Dantas Neto, falou sobre prudência, voluntarismos e a “questão” militar.

Nos contextos da política moderna e contemporânea a noção de prudência assumiu, assume, ou pode assumir significados os mais diversos, até mesmo para disfarçar flertes com a noção oposta de voluntarismo. Geralmente celebrada como habilidade para escolher meios adequados a determinados fins, a prudência, como um bom senso racional, pode ser alegada, inclusive, como atributo de condutas destituídas de boa vontade. É quando a vontade política tenta agir como soberana, politizando tudo. Se a ação quer prevenir o agente e/ou seus supostos beneficiários contra efeitos de ações “dos outros”, pode ganhar, levianamente, a qualificação de prudente, ainda que dos conflitos potencializados por essa racionalidade autocentrada advenha a dilaceração do mundo comum, sem o qual toda razão cambaleia.


Perde-se aí o sentido original da prudência política como qualidade do agir, derivada de um saber prático capaz de escolher meios adequados a fins que nunca são absolutos, primeiro porque sua validade é sempre discutível em sociedades onde a pluralidade é fato; segundo, porque os movimentos que a mesma pluralidade legitima e estimula pressupõem compromisso das partes com a conservação de um mundo comum, onde valem regras e procedimentos desapegados dos vários fins de cada agir.


A confusão não é pouca. Sente-se no ar tanto a escassez gritante desse saber prático, quanto a indiferença para com esse déficit, decorrente da percepção resignada de que um saber virtuoso seria impotente e inócuo no mundo político real. Gradativamente a ideia de prudência política sucumbe e confunde-se com um pragmatismo escravo de vontades de uma realeza que fabrica fatos. Elites políticas são canceladas em favor de mitos-guia e partidos viram times. Alega-se, num “positivismo” tosco, que se trata de nova configuração da política. O que é mesmo novo nessa evidente regressão?
Desde que se tornou estado nacional o Brasil é um rico laboratório para estudo dessa universal e secular contenda entre a prudência que racionaliza a vontade e a vontade que desconsidera a prudência. Diferente do que um raciocínio raso pode concluir, não é uma contenda entre amantes da conservação e da mudança, entre direita e esquerda. Como sabemos, há modos prudentes e voluntaristas de defender ou criticar uma ordem política, resultando em diferentes modos de ser direita ou esquerda. Atitudes políticas reacionárias e revolucionárias são exacerbações equivalentes de voluntarismo, simétricos opostos que entram em evidente contraste com qualquer atitude moderada.


Contudo, os extremismos não são os únicos filhotes do voluntarismo. Se são os mais imediatamente perigosos quando, apesar de caricatos, adquirem base social (como ocorreu no Brasil com a emergência do bolsonarismo), combatê-los é menos complexo do que localizar voluntarismos políticos dissimulados e alertar contra os riscos de sua imprudência, porque esses não ousam dizer seu nome e até condenam os extremismos. Os disfarces servem-se de crenças arraigadas na cultura política para apresentarem-se como praticantes realistas de um ceticismo distópico que deslegitima toda política prudencial, de vocação estratégica, como um passeio nas nuvens. Entre as crenças sociais manipuladas pela comunicação política da antipolítica estão as de que políticos profissionais são cupins e que não há saída para interesses das pessoas comuns senão confiar sua salvaguarda a um chefe ou corporação que combata essa praga. Apelando a tais crenças constrói-se e constroem-se castas, mitos e heróis. Se todos os políticos são abomináveis, sigamos os mais eficazes, eis a moral que emerge dessa atitude blasé.

Já se vê que o déficit de saber prudencial, quando dissimulado, não é próprio apenas do pensamento de "esquerda negativa", aquela que, nos termos de San Tiago Dantas, coloca o seu valor de mudança social como política e moralmente superior a compromissos com a coesão nacional, a manutenção do estado de direito e da democracia política, embora possa falar a favor da última e não confesse abertamente objeção aos dois primeiros. Ele também aparece em voluntarismos de outras cepas ideológicas, entre as quais algumas que habitam o assim chamado - muito a grosso modo - “campo liberal”.


A preocupação também não é de hoje. Eis exemplos não remotos de voluntarismos políticos que não pregavam extremismo, mas ainda assim subordinavam a questão dos meios mais adequados à primazia substancial dos seus fins: do campo liberal (ou de alguns de seus recantos) saiu, na década dos 70, a ideia de “extinguir” o antigo MDB ou dele expurgar os adesistas, por se achar moralmente impossível a convivência com eles naquele espaço, mesmo sem descuidar da luta interna. Tratava-se de atitude seletivamente afim com posições de esquerda que, não mais defendendo a luta armada, denunciavam, porém, o MDB como um dos partidos da ditadura e viriam a criar o PT. Mais tarde, no mesmo campo liberal circularam teses jurídico-politicas como a da "Constituinte exclusiva”, doutrinariamente assentada em que nada de efetivamente democrático poderia sair de um Congresso Constituinte, por ser ele um corpo viciado pelo auto interesse. Posição afim à da esquerda negativa que renunciara ao extremismo, mas não ao voluntarismo. Sem falar em críticas a "imperfeições" da lei da anistia, seja (para alguns políticos e juristas liberais) por anistiar "crimes de sangue" de militantes da luta armada, seja (para outros) por perdoar torturadores, restrição também compartilhada com aquela esquerda.


Ulisses Guimarães fez, no atacado (embora fizesse também concessões de varejo), ouvidos moucos a todos esses reclamos saídos da sua cozinha. Por isso, pôde fazer o barco da frente democrática navegar quando, como e por onde foi preciso. Pagou por isso alto preço pessoal, quando precisou de torcida nas eleições de 1989 e até para conseguir sua última reeleição à Câmara. Mas com ele a prudência venceu a batalha da transição, com a construção de um sistema político guiado pela bússola constitucional. Evidência dessa vitória foi o modo como, logo a seguir, o voluntarismo foi expelido do topo do sistema. O país dividido na eleição de Collor, uniu-se, por aquela mesma bússola, para atalhar seu mandato Fernando Henrique Cardoso, com perfil menos épico, foi ainda mais resoluto no tapar de ouvidos ao mal-estar tucano, devido à aliança estratégica com o PFL. Assim conseguiu que o Plano Real não só tivesse êxito político presencial, como adquirisse força de instituição nacional que ainda hoje é uma referência através da qual a obra de uma geração passada ajuda a atual a conduzir pactos que incluem as do futuro também. Mais que pactos de governabilidade imediata (que também foram) era um pacto de gerações, que um conservadorismo de luzes reconhece como o que sustenta uma nação no tempo.


FHC é reconhecido por isso, assim como Ulisses o foi pela condução da transição democrática. Assim como Ulisses, nem ele nem seu partido tiveram apoio das torcidas pósteras de cada dia. Mas durante seus governos a prudência venceu o voluntarismo mais difícil de enfrentar, qual seja, aquele que se abriga em grupos moderados e até adota a moderação como bandeira política.


Atual século adentro, a contenda continua. Nos anos do PT no poder a prudência seguiu vencendo, a princípio. Começou a inflexionar ainda com Lula, perdeu-se na sua própria trilha e o processo desembocou no voluntarismo forte dos governos Dilma. A ruptura do impeachment sinalizou novo pacto para retomar o fio condutor do plano Real. O governo Temer, tal qual o de Itamar Franco, ergueu uma pinguela, mas dessa vez a ela não sucedeu ponte. Outro voluntarismo, oposto simétrico ao decaído, dinamitou a passagem por onde a prudência supostamente poderia retornar. A Lava-jato guindou o voluntarismo à condição de catarse política e abriu a picada para a eleição de Bolsonaro. Com ela, o acesso ao palácio não mais de um voluntarismo que, a seu modo, assimilara a democracia. Aflorava aquela versão extremista, reacionária, bomba relógio fácil de detectar e perigosa de desativar, o que foi consumado entre outubro de 22 e janeiro de 23. A saga é recente, todos lembramos e não faltam atores e instituições empenhados, dia e noite, em prolongá-la, para não nos deixar esquecer. Nem perdoar.


Arenas do embate atual
Este é um problema atualíssimo: o que fazer com a derrota do voluntarismo da extrema-direita. A ele sucederá /está sucedendo uma política prudencial, ou seu lugar será/está sendo ocupado por alguma versão de voluntarismo dissimulado por alguma reputação, ou auto qualificação, de “moderado”? O jogo do poder ainda não foi suficientemente jogado, mas já está em pleno curso, no âmbito dos três poderes e das corporações relevantes da República. Boa peleja, até aqui travada como luta interna ao espaçoso governismo lato sensu que periga fazer a política brasileira revisitar sotaques regionais da I República. A oposição é, até aqui, em sua maior parte, inimigo comum e, noutra parte, mais invisível, coadjuvante.


Na cúpula do Legislativo, Rodrigo Pacheco e Arthur Lira são arquétipos do prudencial e do voluntarista. O barco do Judiciário tem adernado para o segundo polo, por invisibilidade (espera-se momentânea) de manejo prudencial de timões, após a gestão e aposentadoria de Rosa Weber. No governo, o contraste entre ministros é capítulo à parte. Apesar da luta interna, movem-se todos, por ora, ao redor de Lula, como candidatos a gênio da lâmpada de Aladim. O que não impede distinguir os arquétipos. Dentre outros, Fernando Haddad, Camilo Santana e José Mucio estão claramente postados no polo prudencial.


Haverá   tempo,   com   o   correr   das   semanas,   para   justificar,   além   de   outros,   cada   um   desses “enquadramentos”, feitos, a princípio, de modo arbitrário. Mas não se espere que comentários aos embates travados pelos quadros do polo prudencial refiram-se a pelejas binárias. Os voluntarismos que se interpõem às suas ações frequentemente formam coalizões de veto muitas vezes por motivações ad- hoc. Vale lembrar, a esse respeito, a múltipla pressão sofrida pela estratégia do ministro da Fazenda, vindas de interesses da liderança da Câmara, do PT, de setores reticentes do empresariado e de quadros técnicos e acadêmicos desenvolvimentistas, pressões que se fazem diretamente ao ministro, ou por meio de outras pastas e órgãos do governo, ou pelo seu próprio chefe. Na Educação, a resistência do corporativismo do movimento docente do Ensino Médio, simultânea às críticas e pretensões das universidades federais e de setores do empresariado, tudo isso a cobrar do ministro mais e mais “vontade política, na contramão dos limites prudenciais que adota. Além desses limites, uma onda desestabilizadora vinda de setores ruralistas tornados ou em vias de se tornarem governistas.


A questão militar
Sem espaço para desdobrar agora cada um desses tópicos, finalizarei comentando desafios oferecidos à estratégia prudencial do ministro da Defesa com vistas à pacificação e distensão do ambiente das forças armadas. Por todos os ângulos que se analise, tem sido uma estratégia claramente exitosa. Desde a operação de desmonte, iniciada antes da posse de Lula, em entendimento com os comandos militares, dos acampamentos de protesto contra os resultados das urnas, os quais estavam significativamente esvaziados quando aconteceram os atos golpistas de 8 de janeiro. Igualmente eficaz nas substituições realizadas nos comandos, as quais geraram um clima de menos tensão e mais confiança e cooperação entre o poder civil e as corporações militares, com subordinação das segundas ao primeiro.


A mensagem conciliadora marca um tipo de êxito que incomoda o ânimo de voluntaristas. O afã de punir exemplarmente tanto militares golpistas como supostos prevaricadores - o que atestaria uma cumplicidade das forças armadas com a tentativa de golpe - difunde um tipo de percepção que tende a confundir joio e trigo. A partir de critérios de investigação discutíveis, a Polícia Federal induz a sociedade a pensar que os comandantes militares poderiam ter evitado a conspiração e não o fizeram porque eram cúmplices, ou coniventes, ou simplesmente covardes. Nessa discussão sobre intenções, perde-se o que é objetivamente essencial, isto é, o comando do Exército não evitou a conspiração, mas evitou o golpe. Ccm eficácia discreta, sem tumultuar a eleição, que era o objetivo da extrema-direita.


É plenamente pertinente dizer que é inseguro confiar a proteção da democracia a decisões contingentes de comandantes militares. Eles não devem ter possibilidade de escolha. Devem ser institucionalmente obrigados a obedecer à ordem constitucional e aos poderes constituídos que a regulam, operam e garantem, poderes esses todos de caráter civil, como reza o constitucionalismo liberal. Bem vindas, portanto, as iniciativas de reformas, legislativas ou não, que assegurem essa subordinação. Nada disso, porém, justifica que articulistas de formação liberal embarquem na tese da prevaricação e não reconheçam como positivas condutas de quem agiu corretamente, mesmo sob ambiguidade institucional, instabilidade e avarias na cadeia de comando, provocadas por insídia política continuada.


Esse ângulo de argumentação vem sendo amplamente questionado por opiniões de articulistas e especialistas acadêmicos em assuntos militares. As objeções acenam a uma desconstrução dos objetivos da pacificação e da conciliação, como se nelas estivesse embutido o vírus da impunidade (o que é falso). Quanto à esquerda negativa, contrapõe a tese da oportunidade “histórica” de um acerto de contas com o golpismo não apenas “nas”, também “das” forças armadas. Típico argumento voluntarista pelo qual se pretende extirpar uma atitude entranhada na nossa cultura política, como se militares fossem ETs que se impuseram a uma sociedade democrática. Se o golpismo pudesse ter tratamento cirúrgico, o bisturi teria que cortar muito mais embaixo, até onde a metástase corporativa contaminou a própria sociedade. Se não queremos nos automutilar nem descer aos infernos, a prudência sugere o tratamento conservador do ministro Múcio. Oxalá Lula o conserve e proteja de lógicas faxineiras (as liberais e as esquerdistas) que estão na praça num momento em que um espírito lavajatista de sinal ideológico trocado e incitado desde cima volta a emburrecer, politicamente, o país.


O polo prudencial tem adquirido voz no debate. Marcelo Godoy, jornalista do Estadão, especializado no assunto, tem escrito artigos instigantes desde o 8 de janeiro de 2023, alguns já citados nesta coluna, como faço agora com o mais recente (“Cúpula bolsonarista tentou dividir Exército para dar golpe, mas fracassou” – Estado São Paulo/coluna Opinião/08.02.24). Tiberio Canuto, também jornalista e coordenador da Roda Democrática, acaba de contribuir com um artigo interpretativo de importância estratégica (“O inimigo do meu inimigo é meu amigo - Reflexões do cabo conscrito Portela, 417” – Facebook / Página “Roda Democrática” - 15.02.2024), que recebeu tratamento detido por Luiz Carlos Azedo na sua coluna “Entrelinhas”, no Correio Braziliense e no Estado de Minas (“Preservar as forças armadas faz bem à democracia” – 16.02.2024).


Essas vozes esperam que o presidente Lula continue a não dar ouvidos e torne vãos os reclamos de parte de sua cozinha, a que crê ser a muralha de aço do poder civil que exorcizará os militares da política nacional. Se mantiver sua atual conduta, o exorcismo reclamado terá desfecho similar ao que parte dos "autênticos' do MDB queriam fazer com os "adesistas" ou àquele que o tucanato-raiz, de São Paulo, imaginava fazer com o "atraso patrimonialista" de "coronéis" nordestinos do PFL. Cabe dúvida porque se essa prudência política tiver um preço eleitoral relevante, Lula tende a não pagar porque não aceitará tranquilamente a hipótese de um poente eleitoral. É muito suscetível às urnas, o que, para muitos assuntos, é uma virtude democrática, mas para "resolver" a questão militar, decididamente não. Sem me deter nesse ponto tão subjetivo, digo apenas que é prudente reconstruir o consenso conciliador no Brasil sem depender apenas do tirocínio de Lula. Ao contrário, a reconstrução é, também, para conter, monitorar e governar (ou neutralizar) esse tirocínio.


À parte esse detalhe que pode ser posto na conta da minha rabugice, penso que a análise de Tibério Canuto ecoa - como comentou Luiz Sergio Henriques e ele próprio confirmou - uma tradição de esquerda positiva da qual San Tiago Dantas foi o anunciador e o comunista prudencial, Armênio Guedes, referência política e moral estelar. Mas o espírito da análise revela também, acredito, uma sugestiva aproximação (por afinidade mais do que por estratégia política comum) dessa tradição com outra, de uma certa disposição conservadora de um iluminismo prudencial que preserva os edifícios construídos pela experiência, da hubris reformadora de racionalismos voluntaristas liberais.


Esse clássico contencioso político inglês - outrora tão presente entre nossas elites e antropofagicamente metabolizado pelas ambiguidades de Joaquim Nabuco - volta a fazer sentido hoje, quando a sociedade civil namora o identitarismo e entrega-se a outros flertes anti-iluministas como forma de se rebelar contra uma "modernização por cima" da qual, ao fim e ao cabo, ela própria resulta. Modernização por cima, nacional e estatal, que setores de esquerda (mas não só), alguns instalados no governo com visível conforto, querem reeditar. A luta interna travada no âmbito do governismo lato sensu transborda para a sociedade por osmose política, como uma "briga de branco" (sem trocadilho além da ironia).


Dois voluntarismos conspiram, em paralelo, para interditar o caminho de uma nova sinergia entre estado e sociedade. República platônica e democracia de mitos, quando incursionam pelo campo da ação e interação políticas podem produzir justiça de catões e política de aventureiros miúdos.

 

A questão militar pode cair nessa cilada involuntária de infortúnios voluntaristas. Tratados como virtuais criminosos pela PF, como réus confessos pela Justiça e como espantalhos por políticos de parca visão, os militares não terão terceiro caminho além da rendição sem honra ou do entrincheiramento ressentido na corporação. Dois riscos de infortúnio grave para a República, que o saber prático latente em análises prudenciais pode ajudar a evitar. É preciso sim, difundir e aprofundar essa visão, até ser possível servir o resultado final em compotas, para ser consumido pela elite política que aí está.


* Paulo Fábio Dantas Neto é professor do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia – FFCH-UFBA  pfabio@ufba.br