Odete Roitman continua viva - e os “odetes” brasileiros impunes
No artigo, Frei Betto fala sobre o fenômeno social da novela Vale Tudo.
Em 1988, milhões de brasileiros ficaram paralisados diante da TV para saber quem matou Odete Roitman, a vilã suprema de Vale Tudo, interpretada magistralmente por Beatriz Segall. O mistério atravessou o país como febre, e o bordão “Quem matou Odete Roitman?” entrou para a cultura popular. No final, descobriu-se que a responsável era Leila (Cássia Kiss), movida por ciúmes e ressentimentos.
A vilã morreu, mas, passadas mais de três décadas, a sensação é que Odete Roitman nunca deixou de viver. Ela sobrevive, reencarnada em políticos, empresários e executivos que, à semelhança da personagem, acumulam poder, riqueza e arrogância. Odete representava uma elite acostumada a mandar e a se julgar acima das leis e das pessoas comuns. Essa elite que prefere favorecer as casas de apostas com desoneração tributária em vez de assegurar saúde e educação a milhões de pessoas empobrecidas.
O Brasil, de lá para cá, pouco mudou: continuamos a assistir à novela da impunidade, em que os vilões seguem livres, rindo de um sistema de Justiça lento, seletivo e conivente.
Odete Roitman, na ficção, era símbolo do egoísmo neoliberal que se consolidava nos anos 1980, tempo de redemocratização e de abertura de mercado. “No Brasil, ser honesto é ser otário”, dizia um dos lemas da novela, uma frase que resumia o conflito entre ética e esperteza - dilema que ainda hoje parece reger a política e os negócios nacionais.
Nas últimas décadas, o país colecionou seus “Odete Roitmans” da vida real. A cada escândalo de corrupção - dos orçamentos secretos às rachadinhas, dos remendos das emendas parlamentares à extorsão dos aposentados pelo INSS - a sociedade assiste, indignada, a figuras poderosas escaparem das garras da Justiça. Muitos sequer chegam a ser julgados. Outros são condenados, mas recorrem à prescrição ou à anulação do processo. Há os que, mesmo flagrados em gravações ou planilhas, voltam a disputar eleições e a frequentar colunas sociais.
É como se a morte simbólica de Odete Roitman tivesse sido apenas um intervalo comercial. No capítulo seguinte, ela ressurge em Brasília, nos gabinetes corporativos e nas planilhas de offshores. O roteiro é conhecido: delações premiadas, manchetes, prisões espetaculares, julgamentos televisionados... e, depois, o esquecimento. A moral pública segue em banho-maria, enquanto o “jeitinho” continua a ser o método de sobrevivência e ascensão.
A ficção de Vale Tudo refletia um Brasil em formação, mas o espelho não quebrou. A elite que Odete representava permanece viva e poderosa, como na nova versão da novela. Ela ainda se sente dona do país e acima da lei. Quando algum de seus representantes é pego, reage com indignação, fala em “perseguição política”, contrata os melhores advogados e, no fim, sai limpo ou até mais forte.
O contraste com o destino dos pobres é gritante. Enquanto pequenos furtos levam à prisão imediata, desvios de milhões geram apenas notas de repúdio ou aposentadorias tranquilas. O trabalhador comum sente, diariamente, o peso de uma Justiça que o vigia e o pune, enquanto os “odetes” seguem blindados por toga, sigilo e influência.
A novela de Gilberto Braga perguntava: “Vale tudo para vencer?”. Mais de 30 anos depois, o país parece continuar respondendo “sim”. E o faz com naturalidade, como se a esperteza fosse virtude e a ética um capricho de idealistas.
Talvez o que mais incomode na persistência simbólica de Odete Roitman seja a constatação de que ela não é uma exceção, mas um modelo. O mesmo desprezo pela coletividade, a mesma crença na superioridade do dinheiro e da origem social ainda guiam decisões e projetos parlamentares. É por isso que, enquanto o Brasil não encarar suas desigualdades estruturais e não reformar de fato seu sistema judicial, a vilã continuará sorrindo - viva, altiva e impune.
A morte de Odete em 1988, afinal, foi apenas um artifício dramático. Agora, no remake de Manuela Dias e na vida real, ela segue entre nós, reencarnada em cada escândalo abafado, em cada absolvição conveniente, em cada brinde nos jantares de Brasília ou São Paulo. Vale Tudo acabou, mas a trama nacional da impunidade continua sendo reprisada, todos os dias, em horário nobre. Basta conferir quanto o nosso dinheiro, o dinheiro sofrido do povo brasileiro guardado pelos cofres públicos, já foi despendido com Eduardo Bolsonaro, Carla Zambelli e os irmãos Brazão, todos parlamentares remunerados regiamente sem exercer seus mandatos.
* Carlos Alberto Libânio Christo, Frei Betto, é frade dominicano, jornalista e escritor