A religião da desigualdade

A elite, por sua vez, ergue muros invisíveis e códigos próprios, capazes de separar até o cheiro, como uma herdeira que, em Genebra, pagou 15 mil euros para reproduzir o perfume ancestral da família. O privilégio no Brasil opera nos pequenos detalhes: os salões, escolas, viagens, mesa, e os rituais. Nada é espontâneo, tudo é fronteira para ultrapassar.

Por Camilly Oliveira

O novo relatório da Secretaria de Política Econômica expõe o que o Brasil insiste em romantizar: o 1% mais rico reteve 37,3% da riqueza declarada ao IR (Imposto de Renda) de 2023, ao mesmo tempo em que paga uma alíquota efetiva que despenca de 12% para 4,6% quando se chega ao topo absoluto, os 0,01%. A engrenagem tributária funciona como blindagem histórica, empurrando lucros e dividendos para a categoria dos isentos, 34,9% dos valores livres de IR, enquanto o país naturaliza distâncias que nunca se fecham. 

 


A arquitetura de privilégios encontra sua sustentação cultural na fantasia coletiva da mobilidade. O antropólogo Michel Alcoforado quebra o mito ao mostrar por que o Brasil se apaixona pela elite: não por crítica, mas por identificação aspiracional. Cada brasileiro acredita que pode furar o teto de vidro que jamais se abriu. A crença transforma a desigualdade em espetáculo e os ricos em personagens divinizados. 

 


A elite, por sua vez, ergue muros invisíveis e códigos próprios, capazes de separar até o cheiro, como uma herdeira que, em Genebra, pagou 15 mil euros para reproduzir o perfume ancestral da família. O privilégio no Brasil opera nos pequenos detalhes: os salões, escolas, viagens, mesa, e os rituais. Nada é espontâneo, tudo é fronteira para ultrapassar.

 


Os dados da Fazenda e as análises de Alcoforado formam o mesmo diagnóstico: a elite brasileira não apenas acumula riqueza, mas fabrica a narrativa que justifica sua posição. A ideia de “conquista”, típica dos mais ricos, serve como estratégia para naturalizar a desigualdade e perpetuar a impressão de que nascer no topo é fruto de mérito. O país trata a riqueza como performance, não como estrutura, e o artifício dissolve qualquer possibilidade de avanço real. 

 


O resultado é uma sociedade que confunde admiração com esperança e transforma desigualdade em paisagem permanente. A única saída exige enfrentar a fantasia nacional da ascensão espontânea e desmontar os pilares simbólicos que sustentam a concentração. Sem um verdadeiro choque de realidade, o país continuará com os mesmos donos do topo, que seguem definindo o que é riqueza, quem merece poder e quais portas permanecem fechadas.