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A criança no contexto da cultura de violência e o fetiche por armas

No artigo, o professor do Colegiado de Psicologia da Univasf Marcelo Silva de Souza Ribeiro aborda a liberação do registro e liberação do uso de armas no Brasil.

Alguém aqui já teve a experiência de aventar alguma crítica sobre a questão das armas, mesmo que não fazendo relação com crianças, e notou uma reação bastante contrariada do outro? Seria essa uma reação que indicaria uma paixão atacada? Esse frisson (mesmo uma “tara”) pela questão das armas que tomou conta de uma parte da população brasileira potencializaria a cultura da violência? Essas são questões importantes a serem analisadas considerando os conhecimentos já produzidos ainda que o outro, na sua contrariedade, diga que “jamais” as armas possam trazer algum prejuízo ao desenvolvimento da criança.


Entre a máxima de Harold Garfinkel, de que o outro não é um idiota social e a crítica de Umberto Eco, de que a internet promoveu o idiota da aldeia à condição de portador da verdade, podemos dizer que é importante cultivar a humildade, reconhecer os saberes do senso comum e das tradições, mas também respeitar as ciências e todos aqueles que se dedicam ao conhecimento científico. Neste sentido, a literatura é farta em evidências no que diz respeito aos impactos negativos, sobretudo para as crianças que estão inseridas em contextos de desenvolvimento associados a cultura da violência. Não se pode tratar essa questão pelos achismos e muito menos pela via dos fetiches.


Em texto anteriormente publicado (“Quando a brincadeira se confunde com a realidade”), abordei a questão da apologia às armas e suas consequências no recrudescimento de uma cultura da violência. A socialização da criança em contexto de desenvolvimento marcada pela cultura da violência é projetada para modelos que naturalizam certos valores e atitudes, podendo trazer variados prejuízos. Estes podem se manifestar via processos traumáticos, mecanismos de defesa como insensibilização ou mesmo uma introjeção, que é o caso da criança que, reiteradamente, expressa querer matar o outro como forma de lidar com os conflitos ou insatisfações.


Ainda que as escolas de tiros possam ser “escolas” que exerçam algum tipo de controle social, no sentido de formar pessoas a lidarem com as armas, e que a posse e o porte de armas para a população civil, em certas situações, tenham justificativas plausíveis, não há razão científica para as políticas armamentistas se sustentarem numa espécie de fetiche por armas, onde a experiência é atravessada pela sensação de poder, adoração e uma suposta não consequência dos atos.


A liberação descontrolada de concessão de certificados de registros para colecionadores, atiradores e caçadores (CACs), a exibição de armamentos, inclusive “pesados” em espaços públicos ou postados nas redes sociais digitais, o tráfico de armas pelos próprios CACs, o aumento no registro de mortes ocasionadas por armas de fogo (segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, se não houvesse o aumento de armas de fogo em circulação a partir de 2019, teria havido 6.379 homicídios a menos no Brasil, incluindo aí centenas de crianças) e mesmo a relação de naturalização da arma como símbolo de poder no convívio direto com as crianças, são alguns exemplos a indicar que há um contexto de violência atravessado pelo fetiche às armas. É certo que há também os interesses econômicos (e muita gente ganhando dinheiro com isso), mas o atravessamento do fetiche não os excluiu.

 
O que jamais se deveria permitir é que políticas armamentistas e seus fetiches se expandam da forma como se tem visto no país. Isso sim, jamais deveria acontecer.


* Marcelo Silva de Souza Ribeiro é professor do Colegiado de Psicologia da Univasf (Universidade Federal do Vale do São Francisco)