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A religião é ópio do povo?

No artigo, frade dominicano, jornalista e escritor Frei Betto faz uma análise minuciosa e histórica sobre o poder da religião na vida do povo.

Preâmbulo


Meu objetivo neste texto é ressaltar que o fenômeno religioso, como o político, deve ser sempre encarado pela ótica dialética. Política e religião servem para libertar e, também, para oprimir; depende como são conduzidas na vida de um povo. 

 

Karl Marx, como Fidel Castro, jamais renegaram suas origens religiosas, embora tenham abandonado a fé cristã na maturidade.[1] Marx recorre sempre a conceitos religiosos em suas obras, assim como Fidel usava imagens bíblicas em seus discursos.

 

Desenvolvo aqui uma leitura dialética da famosa expressão de Marx e Engels - “a religião é o ópio do povo”. Ressalto que os pais do marxismo acentuaram o caráter libertador do Cristianismo primitivo, assim como Fidel o fez também na entrevista a mim concedida e reunida no livro “Fidel e a religião”.[2]

 

Embora a tradição marxista hegemônica em países socialistas tenha feito uma leitura equivocada das ideias de Marx quanto à religião e adotado o “ateísmo científico”, coube a Fidel o importante papel de iconoclasta frente a tal mito metafísico ao reconhecer a participação dos cristãos em processos revolucionários e o potencial libertador da fé transmitida por Jesus Cristo.

 

Formação religiosa de Marx

O jovem Karl Marx aspirava a ser professor assistente de Bruno Bauer, que ensinava teologia em Bonn. A religião, portanto, não estava fora do seu horizonte existencial.[3]

 

De família judia, com tradição rabínica desde o século XV, Marx nasceu em Tréveris (5/5/1818), cidade renana de origem medieval. Sua mãe, Henriette Marx (1788-1863), de família judaica com raízes na Holanda, contava vários rabinos entre seus ascendentes.

 

O pai, o advogado Heinrich Marx, também nascido judeu, devido a pressões do imperador prussiano se viu obrigado a se batizar na Igreja Luterana - na qual Marx também foi batizado (24/8/1824). Ainda assim a mãe nunca aceitou o batismo cristão. 

 

Como Fidel, Marx foi aluno em escola católica. Estudou (1830-1835) no colégio Spee – nome em homenagem a um jesuíta alemão progressista. Dos 32 alunos da classe, sete eram luteranos e os demais católicos. Sete chegaram a ser teólogos católicos e um deles a bispo de Tréveris, monsenhor Matthias Eberhard.

 

O professor de religião, Johann Abraham Küpper, teve grande influência sobre Marx. Homem esclarecido, sua teologia moral fugia do moralismo em voga e se centrava na figura de Jesus Cristo e na comunhão da Santíssima Trinidade. 

 

Em seu exame de religião, em 1835, sobre o tema “A unidade crente com Cristo segundo João 1-14”, Marx escreveu que “o homem mais feliz é o que sabe fazer os outros felizes.”[4]


O fetichismo do capital

Criado dentro de uma cristandade prussiana governada por um Estado confessional, Marx é tributário, em suas obras, da formação que teve. Por isso, trabalhou nelas o tema do fetichismo: a inversão que torna a pessoa coisa e a coisa, pessoa - típico do capitalismo, onde o dinheiro tem muito mais valor do que a pessoa. 

 

É feitiço tudo aquilo que feito por mãos humanas é visto como dotado de poderes mágicos ou divinos. Na obra de Marx, o conceito possui duplo aspecto: ser fruto do trabalho humano - objetivação da vida; e essa objetivação como poder autônomo, alheio. Assim Marx passou da crítica política do Estado cristão à crítica econômica do fetichismo.

 

Em seus escritos aparecem com frequência expressões religiosas, como “Moloch” (= capital), “fetiche”, “demônio visível” etc. “O dinheiro é o vínculo que me une à vida humana, que liga a sociedade (...). É a divindade visível (...). É a prostituta universal (...).[5] Vale lembrar que na tradição de Israel Deus é transcendente, invisível. Assim, uma divindade “visível” é satânica, idolátrica, e não pode ser Deus.”

 

“O dinheiro é o deus entre as mercadorias.[6]           O culto ao dinheiro tem o seu ascetismo, as suas renúncias, os seus sacrifícios, a frugalidade e a paciência, o desprezo pelos prazeres mundanos, temporais e fugazes, a busca do tesouro eterno.”[7]

 

Marx conhecia bem o Novo Testamento. No “Grundrisse”, escreveu: “(O dinheiro) de sua condição de servo, em que se apresenta como simples meio de circulação, se torna repentinamente soberano e deus do mundo das mercadorias”.[8]O apóstolo Paulo acentuou em sua “Carta aos Filipenses” (2, 6-7): “Ele (Jesus), de sua condição divina, não considerou que o ser igual a Deus era algo a que devia se apegar; ao contrário, esvaziou-se de si mesmo e assumiu a condição de servo”. 

Marx considerava o dinheiro um Anticristo. Pois da condição de servo ele se faz deus, se diviniza.

 

O autor de “O capital” não faz eco a Nietzsche para dizer que “Deus morreu”. Ao contrário, deus está bem vivo, se chama Capital e exige vítimas humanas. 

 

Tudo indica que Marx conhecia o Salmo 115 (114): “Seus ídolos são de prata e ouro, feitos de mãos humanas: têm bocas, mas não falam; olhos, mas não veem; ouvidos e não escutam.”

 

Em carta a Engels (23/11/1850),[9] Marx escreveu: “É sabido que os senhores de Tiro e Cartago não aplacavam a cólera dos deuses sacrificando a si próprios, mas comprando crianças pobres para atirá-las aos braços ígneos de Moloch. A pobre criança foi um sacrifício à miséria burguesa.”[10] Marx se referia a seu filho, Henrich Guido, morto antes de um ano no apartamento de dois cômodos em Londres, no qual vivia em companhia de sua mulher, Jenny, miseravelmente, sem condições sequer de se aquecerem no inverno.

 

Ao estudar o tema do fetichismo, Marx cita exemplos mexicanos de Yucatán, Cozumel e Copal, e anota textos de frei Bartolomeu de las Casas sobre o ouro como fetiche dos espanhóis em Cuba.[11]

 

Marx e o Cristianismo

Naquele contexto de confessionalidade luterana, Marx logo se deu conta de que a crítica ao Estado implicava a crítica ao seu fundamento, a religião. Ele, no entanto, não atacou a religião em si, atacou a cristandade como confusão entre Estado policial e religião cristã.

 

“Por acaso não foi o Cristianismo o primeiro a separar a Igreja do Estado? Leiam a obra de Santo Agostinho, “De civitate Dei”, ou estudem os Padres da Igreja e o espírito do Cristianismo”, escreveu em artigo publicado na “Gazeta de Colônia”.[12]

 

Marx defendeu a tese de que um cristão não pode aceitar o capitalismo, pois este eticamente adota uma postura demoníaca. Frente a esta contradição o cristão tem quatro opções: 

 

1) Ser fiel ao Cristianismo e renunciar ao capitalismo (como queria Marx);

2) Ser fiel ao capitalismo e renunciar ao Cristianismo (o que é raro);

3) Inventar uma religião fetichista com o selo de cristã, modificando-a para não entrar em contradição com o capitalismo;[13]

4) Interpretar de tal modo o capitalismo para ocultar a negação da ética pelo capital, como fizeram Smith, Ricardo, Malthus e outros.[14]

 

Marx se interessou pela terceira opção e criticou a religião fetichista – que o marxismo posterior e o antimarxismo cometeram o equívoco de entender como crítica à religião em sua totalidade. 

 

Em “O capital”, Marx trabalhou a alternativa 4. Demonstrou que o capital é mais-valia acumulada, objetivação do trabalho não remunerado e, portanto, nega a natureza ética do capital. Marx denunciou que, para tentar ocultar a sua falta de ética, o capital alega “criar valor em si mesmo”, a partir “do nada” – puro fetichismo, denunciou. E ressaltou a dignidade da pessoa do trabalhador como critério ético absoluto na crítica ao capital – e não o valor.

 

Marx conhecia bem a lógica do discurso teológico, que foi ignorado pela tradição marxista.[15] Sabia que a teologia cristã é essencialmente crítica e, portanto, tinha que se opor ao liberalismo na política e ao capitalismo na economia, posição defendida também por Walter Benjamin.[16]

O calvinismo distorceu o Cristianismo para adequá-lo aos parâmetros econômicos do capitalismo, como ocorreu na Escócia, pátria de Adam Smith, onde predominou o presbiterianismo de John Knox adequado ao capitalismo. 

 

Engels e a religião 

Engels, que também teve formação religiosa, escreveu dois artigos importantes sobre a religião. O primeiro, intitulado “Bruno Bauer e o Cristianismo” (1882) e o segundo, “Contribuição para a história do Cristianismo primitivo”, escrito em 1895, ano de sua morte.

Neste último, ele cita os primeiros cristãos como pioneiros do comunismo. Ressalta a natureza libertadora do Cristianismo.

Em “A guerra camponesa na Alemanha” (1850), Engels ressalta que Thomas Münzer, “por meio da Bíblia, enfrentou o Cristianismo feudal de sua época com o despojado Cristianismo dos primeiros séculos (...). Os camponeses utilizavam este instrumento contra os príncipes, a nobreza e o           clero.”[17] (...) “Portanto (pensava Münzer), o céu não é algo do outro mundo, há que buscá-lo nesta vida, e a tarefa dos cristãos consiste em estabelecer aqui, na Terra, o céu que é o Reino de Deus.”[18]

 

Para Engels, Münzer usou “a única linguagem que este (povo) podia entender: a da profecia religiosa.”[19]

 

Ateísmo não é mais necessário

Ao chegar a Paris, em outubro de 1843, Marx, pela primeira vez, se declarou ateu. Ali escreveu “Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel”: “A crítica da religião chegou, no essencial, ao fim na Alemanha, e a crítica da religião é a premissa de toda crítica (...). O fundamento de toda crítica irreligiosa é que o homem cria a religião (...). A religião é uma consciência do mundo invertida (...). A miséria religiosa é, por um lado, a expressão da miséria real e, por outro, o protesto contra a miséria real (...).”

 

“A religião é o suspiro da criatura assediada, o coração de um mundo sem coração, assim como também o espírito de uma época sem espírito”, escreveu na “Crítica da Filosofia do Direito de Hegel “.

 

Chegou um momento em que Marx já não considerava o ateísmo necessário: “O ateísmo, enquanto negação desta carência de essencialidade, carece agora totalmente de sentido, pois o ateísmo é a negação de deus e afirma, mediante esta negação, a existência do homem; mas o socialismo, enquanto socialismo, já não necessita de tal mediação (...). É autoconsciência positiva não mediada pela religião.”[20]

 

O socialismo será a superação prática da religião. Esta é a posição definitiva de Marx e, por isso, jamais concordará com o ateísmo militante - como posteriormente se implantou na União Soviética –, o que o leva a criticar Bakunin porque este “decretava o ateísmo como dogma para seus membros” (da Internacional).[21]

 

Em carta de Marx a Bolte (1871),[22] Marx escreveu: 

 

“Em fins de 1868, ingressou na Internacional o russo Bakunin com o propósito de criar, em seu seio e sob a sua própria direção, uma Segunda Internacional denominada “Aliança da Democracia Socialista”. Bakunin, homem sem nenhum conhecimento teórico, exigiu que esta organização particular dirigisse a propaganda científica da Internacional. (...) Seu programa se compunha de retalhos superficialmente extraídos de ideias pequeno-burguesas captadas aqui e ali: igualdade de classes (!), abolição do direito de herança como ponto de partida do movimento social (estupidez saintsimonista), o ateísmo como dogma obrigatório para os membros da Internacional[23] etc. e, como dogma principal, a abstenção proudhonista do movimento político”.[24]

 

Uma pergunta que se nos impõe hoje, à luz dos 70 anos de socialismo na União Soviética e mais de 60 anos em Cuba: o socialismo tem sido a superação prática da religião?


Marx e a religião como “ópio do povo”

“A angústia religiosa é, ao mesmo tempo, a expressão da verdadeira angústia e o protesto contra esta verdadeira angústia. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, tal como é o espírito de uma sociedade sem espírito. Ela é o ópio do povo.” (Marx, 1844). 

 

Em seu artigo intitulado “Marx e Engels como sociólogos da religião”, Michael Löwy afirma que a frase “a religião é o ópio do povo” não é criação de Marx.[25] Tal afirmação é anterior à obra de Marx, com diferentes matizes “em Kant, Herder, Feuerbach, Bruno Bauer e muitos outros.”[26] A frase “a religião é o ópio do povo” aparece como citação de Marx em sua obra “Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”, (1844), não sendo uma afirmação paradigmática. Löwy observa que a frase precisa ser compreendida em sua complexidade, destacando que Marx se refere à religião em “seu duplo caráter” contraditório e dialético: “às vezes legitimação da sociedade existente, às vezes protesto contra tal sociedade.”[27]

 

Sobre isso me disse Fidel em nosso livro: “Em minha opinião, a religião, sob a ótica política, não é, em si mesma, ópio ou remédio milagroso. Pode ser ópio ou maravilhoso remédio na medida em que sirva para defender os opressores e os exploradores ou os oprimidos e os explorados. Depende da forma como aborda os problemas políticos, sociais e materiais do ser humano que, independentemente de teologias ou de crenças religiosas, nasce e tem que viver neste mundo.”

 

Portanto, a frase “a religião como ópio do povo” não é sua mais importante afirmação sobre a religião. Mas se popularizou e passou a ser entendida como uma condenação política paradigmática da religião, usada para justificar o ateísmo político de certas tendências de esquerda, para as quais não haveria possibilidade de conciliação entre religião e revolução.[28] Nesse modo de entender, quem quiser ser revolucionário marxista deve abandonar suas convicções religiosas; e quem quiser praticar uma religião deve repudiar o marxismo.

 

Foi preciso esperar décadas para que Fidel superasse tal preconceito com seu lapidar pensamento: “De um ponto de vista estritamente político – e penso que conheço algo de política -, considero que se pode ser marxista sem deixar de ser cristão e trabalhar unido ao comunista marxista para transformar o mundo. O importante é que, em ambos os casos, sejam sinceros revolucionários dispostos a erradicar a exploração do homem pelo homem e a lutar pela justa distribuição da riqueza social, pela igualdade, pela fraternidade e pela dignidade de todos os seres humanos, isto é, sejam portadores da consciência política, econômica e social mais avançada, ainda que se parta, no caso dos cristãos, de uma concepção religiosa.”[29]

 

Segundo Löwy, nos encontramos diante de um equívoco hermenêutico. Para ele, é em “A Ideologia Alemã” (1846) que aparece a noção marxista da religião – e também o direito, a moral, a filosofia -, como reflexo das relações materiais de produção, “condicionadas pela produção material e pelas relações sociais correspondentes.”[30] Portanto, a postura de Marx não era de proclamar um anátema da religião como “ópio do povo”. A religião, se por um lado é condicionada pelas condições materiais de existência, por outro pode influir na prática de quem se propõe a mudar tais condições. Há “íntima e eficaz conexão entre os dois fenômenos”, lembra Löwy.[31]

 

Se a religião “é o suspiro do ser oprimido, é o ópio do povo”, ela é uma espécie de anestésico que alivia a pessoa de seu sofrimento real no “vale de lágrimas”. Cabe aqui a pergunta: o socialismo elimina por completo o sofrimento real? Sabemos que não. Ainda que elimine a dor causada por enfermidades e, portanto, suprimida pela medicina, o socialismo e o comunismo jamais haverão de eliminar o sofrimento, uma experiência subjetiva provocada por frustração, ansiedade, ruptura afetiva, transtorno psíquico etc. Mas não é este aspecto que justifica a existência da prática religiosa. Ela não é, e primeira instância, um apoio ou consolo ao sofrimento humano. É uma via que nos faz vivenciar o amor como experiência de Deus e, assim, assumir uma relação de alteridade respeitosa com o próximo e a natureza.

 

Uma compreensão adequada do contexto no qual Marx afirma que “a religião é o ópio do povo” revela que ele a entendia como produto, efeito de um contexto social, e o que deve ser atacado são suas causas, suas raízes, e não a religião em si. 

 

Em “O capital” Marx afirma que a religião só pode desaparecer quando as causas sociais que lhe dão origem também desaparecerem: “O reflexo religioso do mundo real só pode desaparecer quando as relações do cotidiano prático se apresentarem aos homens, diariamente, de forma transparente e racional, como relações uns com os outros e com a natureza.”[32]

 

Como assinala Fábio Régio Bento,[33] Marx podia ser ateu, mas o materialismo do marxismo não é crente nem ateu. Não se trata de um materialismo filosófico nem teológico, mas de um materialismo sociológico, político, econômico, focado na análise das relações de produção, que reconhece que tais relações materiais são legitimadas ou contestadas por reproduções ideológicas conservadoras ou revolucionárias, de caráter leigo ou confessional. 

 

Assim, ao assumir como dogma que “a religião é o ópio do povo”, muitos marxistas passaram a associar socialismo e ateísmo, revolução e ateísmo, esquerda e ateísmo, demonstrando desconhecerem o pensamento de Marx e Engels. 

 

Essa falsa hermenêutica não é, contudo, o mais importante. O mais grave foi o erro político e estratégico decorrido dela, ou seja, excluíram da luta revolucionária e dos partidos comunistas os revolucionários crentes, os que abraçavam alguma confissão religiosa, afastando-se de amplos segmentos populares culturalmente religiosos e, assim, oferecendo ao inimigo a bandeira da incompatibilidade entre socialismo e Cristianismo e da plena compatibilidade entre capitalismo e Cristianismo. Ora, o marxismo não é, em sua origem, ateísta, é laico, é um método de análise da realidade que foge de qualquer metafísica. 

 

Fidel me disse na entrevista contida em “Fidel e a religião”: “Concordo com sua observação de que o marxismo é uma importante contribuição ao desenvolvimento das ciências sociais. Os que, a partir de uma postura religiosa, se preocupam com essas questões, ao buscarem explicações e realizarem pesquisas utilizam, de certa forma, o marxismo como um instrumento de análise, já que toda pesquisa deve ter uma base e um método científicos. Não utilizam o marxismo para explicar problemas teológicos, metafísicos ou filosóficos, e sim fenômenos econômicos, sociais e políticos. É como quem faz o diagnóstico de uma doença e utiliza um recurso ou equipamento científico, não importa se produzido nos Estados Unidos, na França, na União Soviética, no Japão ou em qualquer outro país. A ciência, como tal, não tem ideologia. Um instrumento científico, um remédio, um equipamento médico ou industrial, uma máquina, não têm ideologia em si mesmos. Mas uma interpretação científica pode encerrar uma ideologia política; não me refiro a uma convicção religiosa.”

 

Uma análise verdadeiramente dialética da famosa expressão que aparece na “Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”, comprova que Marx levou em conta o duplo caráter do fenômeno religioso: de expressão da miséria real e, também, de protesto frente a essa miséria real. 

 

Embora a afirmação de 1844 seja de um Marx ainda neohegeliano de esquerda, discípulo de Feuerbach, o que nos permite dizer de um Marx “pré-marxista”, que ainda não abordava a contradição de classes – como fez em “A ideologia alemã” (1846) e no “Manifesto comunista” (1848). É inegável, entretanto, que se trata de uma afirmação dialética. Se a religião legitima as condições reais de existência, também manifesta uma crítica a essas condições, como o comprova a Teologia da Libertação, sobre a qual me manifestou Fidel na entrevista a mim concedida: “Eu poderia definir a Igreja da libertação ou a Teologia da Libertação como um reencontro do cristianismo com as suas raízes, com a sua história mais bonita, mais atrativa, mais heroica e mais gloriosa, e de maneira tão importante que obriga toda a esquerda da América Latina a considerar este um dos acontecimentos mais fundamentais de nossa época.”

 

A luta de classes atravessa a própria Igreja, como observou Engels em seu estudo sobre os anabatistas do século XVI, “A Guerra Camponesa” (1850). As religiões, em suma, estão dentro das lutas de classes e não fora delas. “A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes.”[34]

 

As religiões também foram combatidas pelas revoluções burguesas, que as consideravam alicerces dos regimes feudais e monarquistas. Contudo, elas acabaram por se adaptar às sociedades burguesas.

 

No diálogo com Fidel admito que muitas instituições religiosas se posicionaram de forma conservadora e contrarrevolucionária frente às lutas latino-americanas de emancipação social, mas também muitos partidos comunistas falharam por professarem um ateísmo academicista que os afastava dos pobres impregnados de fé.

Fidel ponderou que a expressão “a religião é o ópio do povo” pode ter sido “justa num determinado momento”, e valer ainda em algumas circunstâncias, mas “de nenhum modo aquela frase tem ou pode ter o caráter de dogma ou de verdade absoluta. É uma verdade ajustada a determinadas condições históricas concretas. Creio que é absolutamente dialético e marxista tirar esta conclusão. Em minha opinião, a religião, sob a ótica política, não é em si mesma ópio ou remédio milagroso. Pode ser ópio ou maravilhoso remédio na medida em que sirva para defender os opressores e os exploradores ou os oprimidos e os explorados.” Fidel resgatou, assim, a hermenêutica dialética da frase de Marx. 


A religião como fenômeno libertador

Se a religião é “o coração de um mundo sem coração” e “o suspiro da criatura oprimida”, é, portanto, uma forma de protesto diante do mundo real. Nas palavras de Marx, ela é, para a pessoa religiosa, sua teoria geral do mundo, seu compêndio enciclopédico, sua lógica dentro da cultura popular. Pergunte a qualquer trabalhador sem escolaridade – uma cozinheira, um camponês, um faxineiro - o que pensa do mundo, da vida e da morte e, com certeza, ele dará uma resposta tecida em categorias religiosas. Afirmação semelhante seria feita anos depois por Nietzsche, para quem o Cristianismo é um platonismo para o povo.

 

Fidel me afirmou: “Se você me diz que nas atuais condições da América Latina é um erro acentuar as diferenças filosóficas com os cristãos que, como parte majoritária do povo, são as vítimas massivas do sistema, então eu diria que você tem razão. Embora o prioritário fosse, a meu ver, concentrar o esforço em conscientizar para unir em uma mesma luta todos os que carregam uma mesma aspiração de justiça.  E muito mais lhe dou razão quando se observa a tomada de consciência dos cristãos ou de importante parcela deles na América Latina. Se partimos desse fato e das condições concretas, é absolutamente correto e justo exigir que o movimento revolucionário tenha um enfoque adequado da questão e evite, a todo custo, uma retórica doutrinal que entre em choque com os sentimentos religiosos da população, inclusive de trabalhadores, de camponeses e de setores médios, o que só serviria para ajudar o próprio sistema de exploração. Eu diria que, frente a uma nova realidade, deveria haver uma mudança no tratamento da questão e nos enfoques da esquerda. Nisso concordo inteiramente com você. Para mim, é inquestionável. Mas durante um longo período histórico, no qual a fé foi utilizada como instrumento de dominação e de opressão, há lógica no fato de os homens que desejaram mudar esse sistema injusto terem entrado em choque com as crenças religiosas, com aqueles instrumentos e com aquela fé. Creio que a grande importância histórica do que você denomina Teologia da Libertação, ou Igreja da libertação – como preferir -, é precisamente sua profunda repercussão nas concepções políticas dos cristãos. E eu diria algo mais: significa o reencontro dos cristãos de hoje com os cristãos de ontem, dos primeiros séculos, quando surgiu o cristianismo depois de Cristo.”


Com o objetivo de resgatar o Cristianismo primitivo, valorizado por Engels e Fidel, publiquei, em agosto de 2022, o livro “Jesus militante – o Evangelho e o projeto político do Reino de Deus,”[35] no qual defendo, baseado em análise detalhada do “Evangelho de Marcos”, o primeiro a ser escrito, que Jesus não veio fundar uma religião, o Cristianismo, ou uma Igreja, a cristã. Veio nos propor um novo projeto civilizatório, político, fundado em dois pilares: nas relações pessoais, o amor; nas relações sociais, a partilha dos bens da natureza e dos produzidos pelo trabalho humano. A esse projeto Jesus denominava Reino de Deus em oposição ao reino de César, sob o qual vivia. Por isso, acusado de sedição, sofreu prisão política e foi condenado à pena de morte na cruz. 


Socialismo e religião 

A experiência socialista comprovou, entretanto, que mesmo combatendo a “miséria real” a religião não desaparece. Como não desaparecem outros fatores que transcendem a razão humana: a arte e o amor. Até porque tanto o marxismo quanto as religiões são sistemas de sentido. Pretendem explicar a vida e a história humanas, assim como também pretende o capitalismo. A diferença é que as religiões são sistemas de sentido mais abrangentes, vão além do que pode ser explicado pela ciência e pelos paradigmas da estética, explicam desde a importância do perdão na reconciliação de duas pessoas que se desentenderam até a origem do Universo e da vida e o que se passa após a morte. 

 

Fidel declarou na entrevista: “Quando Marx criou a Internacional dos trabalhadores,[36] havia entre eles muitos cristãos. Também na Comuna de Paris havia muitos cristãos entre os que lutaram e morreram. Não há uma só frase de Marx excluindo aqueles cristãos, dentro da linha ou da missão histórica de levar adiante a revolução social. Se vamos mais além e recordamos todas as discussões em torno do programa do Partido Bolchevista, fundado por Lênin, você não encontra uma só palavra que exclua os cristãos do Partido. A principal exigência é a aceitação do programa do Partido como condição para ser militante. De modo que aquela frase tem valor histórico e é absolutamente justa em determinado momento. Neste momento, pode haver circunstâncias em que ela ainda seja expressão de uma realidade. Em qualquer país no qual a hierarquia católica ou a de outra Igreja esteja estreitamente associada ao imperialismo, ao neocolonialismo, à exploração dos povos e dos homens e à repressão, não devemos nos surpreender que alguém repita que “a religião é o ópio do povo.” Como se compreende perfeitamente que os nicaraguenses, a partir de suas experiências e da tomada de posição dos religiosos nicaraguenses, tenham chegado àquela conclusão, a meu ver muito justa, de que, a partir de sua fé, os cristãos podem assumir uma posição revolucionária sem haver contradição entre a condição de cristão e a de revolucionário. Portanto, de nenhum modo aquela frase tem ou pode ter o caráter de dogma ou de verdade absoluta. É uma verdade ajustada a determinadas condições históricas concretas. Creio que é absolutamente dialético e marxista tirar essa conclusão.”


Epílogo

Ao contrário de todas as previsões iluministas, o fenômeno religioso não apenas impregna a cultura de povos do mundo inteiro, como se mostra em ascensão. E as forças de direita se apegavam resolutamente a ele por reconhecerem seu alcance popular, o que facilita a manipulação das consciências rumo à naturalização das desigualdades sociais, à exaltação da meritocracia individual e à abnegação em situação de opressão. 

 

Nesse sentido, a religião disseminada pela direita é sim um ópio que tem por objetivo desmobilizar as forças populares potencialmente revolucionárias, de modo a postergarem para a eternidade o direito a uma vida digna e feliz.

 

Na América Latina, o fenômeno se apresenta sobretudo pelo fundamentalismo cristão de Igrejas evangélicas e setores do catolicismo. Os dados mostram que nosso Continente, tradicionalmente católico, tende a ser, agora, predominantemente evangélico de perfil protestante neopentecostal. Portanto, devidamente legitimador do sistema capitalista.

O progressismo das Comunidades Eclesiais de Base e de seu fruto mais expressivo, a Teologia da Libertação, tão vigentes entre as décadas de 1970-1990, refluiu sob os 34 anos de pontificados conservadores de João Paulo II e Bento XVI. O papa Francisco se empenha em recuperar o terreno perdido, embora saiba que, hoje, ele é a cabeça progressista de um corpo estruturalmente conservador.

 

Por sua vez, a esquerda mundial se viu abalada sob os escombros da queda do Muro de Berlim. Na Europa, se esfacelou e amplos segmentos foram absorvidos pelo neoliberalismo. Na América Latina, abandonou os propósitos revolucionários para se adaptar a programas políticos social-democratas assumidos por partidos e governos progressistas. O pensamento marxista ficou recolhido às bibliotecas e o socialismo, com exceção de Cuba, deixou de ser um objetivo histórico.

 

 

A questão que me parece mais importante, na atual conjuntura, é a politização, organização e mobilização dos amplos setores populares, quase sempre impregnados de forte religiosidade cristã. Numa palavra: retornar ao trabalho de base, tão intenso na América Latina nas décadas de 1960 a 1990. Retirar Paulo Freire das prateleiras de livros. Desafio nada fácil considerando que, hoje, esses setores, em muitos países, estão sob o comando de pastores e padres fundamentalistas, braços do narcotráfico, milícias ou grupos paramilitares. 

 

Se em nosso povo a porta da razão é o coração e a chave do coração a religião, a esquerda terá que necessariamente abraçar a pedagogia de trabalho popular que leva em conta o fator religioso. O discurso político em si nem sempre encontra eco nas camadas populares, muitas delas decepcionadas com partidos e governos. A hermenêutica religiosa terá que entrar na pauta da militância de esquerda. Não para manipular consciências, como faz a direita, e sim para reaprender a valorizar a fé das pessoas mais simples e ajudá-las a fazer uma leitura libertadora da Bíblia, considerada por elas Palavra de Deus.

 

Se em países como Brasil e México a esquerda, para ter êxito, deverá sempre contar como aliadas a Virgem de Aparecida e a Virgem de Guadalupe, em toda a América Latina não há como avançar para superar o capitalismo e implantar uma sociedade socialista sem ter como aliado o companheiro Jesus de Nazaré. 

 

* Carlos Alberto Libânio Christo, Frei Betto, é frade dominicano, jornalista e escritor