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Jayme Figura e a invisibilização do negro

No artigo, o cineasta, diretor teatral, poeta e escritor., Carlos Pronzato falou sobre a invisibilização do negro com a morte de Jayme Figura.

Em 20 de novembro de 1695 foi morto Zumbi dos Palmares, último líder do Quilombo dos Palmares. Sua morte decretou o fim - alguns autores sustentam que o massacre final provocou uma dispersão, mas não o fim - dessa experiência de liberdade prática no mundo escravocrata do século XVII e que teve um século de duração na atual Alagoas (a antiga Capitania Geral de Pernambuco). Esse processo de libertação foi iniciado por uma mulher, Aqualtune, que fugindo da Casa-grande marcou o caminho para que milhares de escravizados encontrassem um território onde exercer uma outra organização social comunitária. Portanto, essa histórica data refere-se a um personagem histórico que resiste, inclusive hoje, aos embates racistas de uma Historiografia conservadora que invisibilizou e ainda tenta invisibilizar a História da população afrodescendente deste país. Já no domingo 26 de novembro faleceu na cidade de Salvador, o enigmático artista performático Jayme Figura, personagem do quotidiano das ruas de Salvador, com quem conversei em diversas oportunidades sempre me chamando poderosamente a atenção a sua extrema amabilidade escondida debaixo das pesadas armaduras e objetos que compunham a sua obra artística corporal ambulante, além das que decoravam o interior da sua casa na rua do Carmo, denominada Sarcófago. Jayme Figura viveu a batalha contra a sua própria invisibilidade de homem negro e artista popular durante décadas, explodindo o anonimato com seu grito lancinante em forma de couraça nas ruas do Pelourinho. Isto no último país do mundo a abolir oficialmente a escravidão e o primeiro em população negra fora do continente africano, onde o racismo passou do silente eufemismo tradicional a um explicito ataque nas redes e nas ruas incentivado pelo alto escalão do estado brasileiro durante o governo anterior através, incrivelmente, do gestor da Fundação Palmares. Esse segregacionismo não declarado abertamente pode ter gerado a extraordinária performance de um artista negro como Jayme Figura para impor a sua visibilidade diariamente, muito além de uma performance numa Sala de Arte, afrontando cara a cara o racismo à brasileira. O artista plástico Jayme Figura, no Quilombo dos Palmares, andaria de peito descoberto, rosto ao vento, numa sociedade que combateu como nenhuma a escravidão e deixou esse legado de luta, constante resistência e construção social diametralmente oposta ao Império colonial Português. Aqui, hoje, num mundo em vias de destruição final provocado pelo capitalismo galopante, Jayme Figura esconde o rosto e cria o seu próprio mundo, incomoda com sua estranha figura e ao mesmo tempo se faz visível e nos tende sua mão de compaixão, partindo num novembro negro. 


 *Carlos Pronzato é cineasta, diretor teatral, poeta e escritor. Sócio do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB)