Legítima ocupação
No artigo, Carlos Pronzato fala sobre direitos humanos
A imensa dívida humanitária que o Brasil mantém com a sua memória histórica mais recente, a das prisões, torturas, mortes e desaparecimentos de pessoas durante a ditadura empresarial militar (1964-1985) teve um lampejo de reparação espontânea, um oásis no deserto da impunidade estatal na madrugada de 1 de abril deste ano, quando ativistas sociais e militantes da Unidade Popular pelo Socialismo ocuparam o edifício que abrigou um dos principais centros de repressão da ditadura, o Departamento de Ordem Política e Social (Dops), na avenida Afonso Pena, no centro de Belo Horizonte. Os ocupantes exigem que o prédio, tombado pelo IEPHA (Instituto do Patrimônio e Artístico de Minas Gerais), em 2016, venha a ser transformado no Memorial dos Direitos Humanos.
Renato Campos, militante do Movimento Luta de Classes (MLC), afirmou ao jornal Brasil de Fato, de MG: “Se a gente não rever o que a ditadura praticou, vai parecer comum e normal uma nova tentativa de golpe, como a gente sofreu no dia 8 de janeiro de 2023”.
A primeira manifestação para trazer a público o terror que assombrou durante tantos anos esse histórico prédio foi realizada no processo de redemocratização, quando a histórica militante Helena Greco (PT) foi às suas dependências para trancá-lo com um cadeado, graças ao seu reconhecimento enquanto espaço de tortura. Posteriormente, a Lei Estadual 13.448/2000 respaldou a iniciativa dos movimentos populares, instituindo o Memorial dos Direitos Humanos de Minas Gerais.
No governo de Fernando Pimentel (PT), o processo avançou, mas não foi efetivado. No entanto, a conclusão das obras foi repassada para o governo atual do Romeu Zema (Partido Novo). O governo, que se negou a negociar por mais de 40 dias - tendo inclusive um habeas corpus favorável à ocupação - e manteve a polícia na porta do prédio, acaba de obter pedido de reintegração de posse. Diante do risco iminente de despejo, os movimentos sociais chamaram à resistência popular no domingo passado.
Visitei tempo atrás o tenebroso prédio, durante a didática ocupação dos movimentos sociais, que abrindo as obscuras celas à visitação pública, discorrem sobre o passado do centro de tortura e o que se impõe, sem muita discussão, é a convocação imediata de profissionais (historiadores, antropólogos, advogados, arquitetos, etc.) e testemunhas daquele terror, ex presos políticos, para imediatamente colocar mãos à obra - já existe um projeto pronto para ser implementado - e diminuir um pouco a vergonhosa dívida que o Brasil tem em comparação aos seus vizinhos do Cone Sul, que julgaram e condenaram seus genocidas e refundaram estes prédios, para que o passado seja um constante alerta, como Memoriais dos Direitos Humanos.
* Carlos Pronzato é cineasta, diretor teatral, poeta e escritor. Sócio do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB). carlospronzato@gmail.com