O Brasil prende muito. E mal

Com a experiência de quem exerce a função de juiz da Vara de Execução Penal no Amazonas, o criminalista Luís Carlos Valois Coelho, 56 anos, com doutorado na USP sob o tema “O Direito Penal da guerra às drogas”, não tem a menor dúvida de que “o Brasil prende muito e prende mal”. Ele esteve em Salvador, no dia 14 de dezembro passado, quando participou do seminário Paz só com justiça social - A (In)eficácia da política de encarceramento em massa, promovido pelo Iapaz e realizado no auditório do Sindicato dos Bancários da Bahia.

Com a experiência de quem exerce a função de juiz da Vara de Execução Penal no Amazonas, o criminalista Luís Carlos Valois Coelho, 56 anos, com doutorado na USP sob o tema “O Direito Penal da guerra às drogas”, não tem a menor dúvida de que “o Brasil prende muito e prende mal”. Ele esteve em Salvador, no dia 14 de dezembro passado, quando participou do seminário Paz só com justiça social - A (In)eficácia da política de encarceramento em massa, promovido pelo Iapaz e realizado no auditório do Sindicato dos Bancários da Bahia.

 

Por Rogaciano Medeiros
 
O Bancário - Qual a participação do Judiciário, ou melhor, do sistema de justiça, no encarceramento em massa no Brasil, hoje de mais de 800 mil presidiários?
Valois - Eu penso que o Judiciário, por ser uma classe, um segmento com privilégios além do que o trabalhador normal recebe, com dois meses de férias e outros benefícios, procura se legitimar politicamente na sociedade e tem se legitimado descambando para o populismo penal do encarceramento em massa. E quando encarcera como tem encarcerado, privilegiando prisão, a versão da polícia, o Judiciário pratica o populismo penal, para não ser contra-hegemônico, pois é conservador.   
 
O Bancário - O que tem sido discutido e incrementado no Judiciário para, senão diminuir, pelo menos conter o crescimento da população carcerária?
Valois - Nós tivemos recentemente, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal dando uma decisão de que o sistema penitenciário está em estado de coisa inconstitucional, umas medidas muito tímidas, no meu entender, com relação a desencarceramento, ao regime semiaberto, à prisão provisória, pois não atinge realmente a grande massa da população encarcerada de regime fechado. Acho que tem sido feito muito pouco. Fazem mutirões paliativos aqui e ali, que os presos costumam chamar esses mutirões de mentirões, porque não resolvem nada, mas é o que tem sido feito, justamente porque o judiciário não quer desagradar a política pública de encarceramento.
 
O Bancário - Quais posições o senhor tem adotado, nos planos teórico e prático, no exercício da magistratura, para ajudar a reduzir o problema?
Valois - Eu trabalho na Vara de Execução Penal, que fica lá na ponta da corda, do sistema, só trabalho com condenados, com pessoas que já estão presas. Eu procuro aplicar a jurisprudência, a doutrina, mais benéfica possível, porque eu acho que a legislação não está sendo cumprida, principalmente a legislação penal, que diz que a pessoa tem de ser presa porque cometeu crime, é a legislação que diz como tem de ser presa, como tem de ser a prisão, e isto não tem sido respeitado. Costumo dizer que toda prisão no Brasil é ilegal, pois se existe uma lei que diz como tem de ser a prisão e não é cumprida, então está na ilegalidade. Eu tento fazer uma interpretação o mais favorável possível, por exemplo, ver se cabe prisão domiciliar para uma mulher que tem filhos, que está grávida, tem jurisprudência para doente que não tem condições de tratamento no sistema penitenciário.  
  
O Bancário - É possível dissociar o alto índice de criminalidade e o elevado encarceramento da brutal concentração de renda no Brasil?
Valois – Claro que não. Está totalmente ligado uma coisa com a outra. Inclusive, a própria seletividade do sistema penal é influenciada por isto, pois se aponta a alça de mira do sistema penal para a periferia, para os pobres, que têm menos garantias, menos direitos já desde que nascem e passam a ter menos garantias no sistema penal.
            
O Bancário - Como combater a criminalidade sem elevar a população carcerária? Isto é exequível?
Valois - Não fui eu quem disse isto, já disseram muitas vezes que o Brasil prende muito e prende mal. Com o alto encarceramento a gente está aumentando em vez de diminuir a criminalidade. Só de se diminuir o encarceramento já diminui a criminalidade. Se mistura todo tipo de gente em presídios superlotados, sem condições nenhuma, é óbvio que vai elevar a criminalidade. A primeira discussão a se fazer sobre a criminalidade é a questão das drogas. É imprescindível. As pessoas não querem discutir, é um tabu, há um preconceito moral com relação às drogas, mas nenhuma droga mata tanto quanto tem matado a política de segurança pública no Brasil. Então, discutir a descriminalização das drogas é essencial, é primordial porque a gente está prendendo pessoas pobres, pretas, periféricas e jogando na penitenciária com todo tipo de criminalidade, pessoas que estão lá no varejo, que arrumaram uma forma de conseguir um trocado e foram para a penitenciária. Isto não faz sentido, não tem lógica. A política de droga brasileira não tem racionalidade, não tem nexo, é racista, violenta e só é mantida porque amplia o poder policial de uma forma tão grande do Estado, que o Estado se satisfaz. Só a descriminalização da cannabis já diminuiria cerca de 15% a 20% a população carcerária masculina e até 50% a feminina, pois as mulheres são as mais encarceradas por causa da política de droga.