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Uma história de Iemanjá

No artigo, o escritor Gildeci de Oliveira Leite faz uma análise sobre o preconceito que as religiões afro-brasileiras, principalmente o candomblé, sofrem. Resultado do racismo estrutural da sociedade brasileira.

Certa vez, a pretexto de exercício e ensinamento da diversidade religiosa, fui convidado a falar sobre candomblé, religiões de axé, orixás, inquices, voduns para uma respeitada organização juvenil feminina. Cercada de cuidados, a organização decidiu que não levaria as meninas, algumas no início da adolescência e outras no início da fase adulta, a um terreiro de axé. A iniciativa exigia atenção, era melindrosa! Nos momentos de conhecerem um pouco mais de religiões cristãs, tudo foi mais tranquilo, as meninas e mocinhas visitaram templos e até receberam bênçãos sacerdotais. Tratando-se de assuntos e de religiões de axé era preciso ter o devido cuidado para não parecer uma tentativa de conversão daquelas almas. Oxente, elas e eles (havia dirigentes homens) esqueciam-se que a captura e conversão de novos fiéis sempre fora iniciativa do cristianismo.


Mesmo sem perceberem, os cuidados excessivos compreendiam parte do racismo para-estrutural, conceito explicado por Muniz Sodré. Perdoei em silêncio! Preferi seguir meus pensamentos! Fiz a apresentação como faria para uma aula de “Mitologia afro-brasileira” — componente curricular que criei para cursos de Letras da UNEB. Expliquei que não era sacerdote e que religiões afro-brasileiras, principalmente o candomblé, não são proselitistas, portanto não procuram converter novas almas. Iniciei com o necessário e educado recado sobre diversidade, direito à diferença, pluralidade. Sob os olhos atentos da pequena e consistente plateia tentei desfazer alguns preconceitos. Todas as narrativas surtiram algum encantamento. Os feitos de Oxum, Iansã, Iemanjá e Nanã causaram felizes reboliços, as meninas e suas tutoras sentiram-se representadas nas audácias e inteligências dos orixás femininos.


Algo de um pouco mais especial aconteceu ao falar de Iemanjá. Uma mocinha disfarçou ao máximo sua alegria e identificação. Percebi o contentamento mais desmedido através dos sorrisos e forçadas repressões da própria felicidade. A mocinha parecia ser de Iemanjá, tinha a companhia da mãe dos peixes por ali. Mantive a postura de professor, guardando as percepções de filho de axé!


Ao final, a revelação para mim e para algumas poucas amigas que com ela me circundavam. Minha família toda cultua Iemanjá, desde minha avó, disse a moça! Continuei na postura de docente, não queria parecer proselitista, apenas sorri, disse que sabia que Iemanjá estava ali. Descobri que cultuavam a Rainha do Mar do jeito delas, sem as exigências de religiões de axé. Entendi que em um ambiente cheio de preconceitos, era a melhor forma que tinham para pedir a proteção da mãe dos peixes, pediam apenas com o coração. Fiquei em silêncio, preferi continuar sendo professor. Axé!


* Gildeci de Oliveira Leite é Escritor, Sócio do IGHB, PPGEL/MPEJA-UNEB. Publicado em 12.02.2023 no Jornal A Tarde